O episódio do podcast Rebobinando, intitulado “Você não deve nada aos seus pais”, toca num ponto delicado: o sentimento de dívida que muitas pessoas carregam em relação às figuras parentais. Mais do que uma provocação, a frase revela o peso psíquico de vínculos familiares marcados por expectativa, sacrifício e, muitas vezes, culpa. Como psicólogo, muitas pessoas acabam trazendo às sessões angústias decorrentes dessa realidade e acredito que a psicanálise tem muito a dizer sobre esse tipo de relação.
Freud, em Totem e Tabu (FREUD, 2012) e O Mal-Estar na Civilização (FREUD, 2010), mostrou como o sentimento de dívida tem raízes profundas na formação do superego. A culpa que carregamos – inclusive a culpa inconsciente – pode estar ligada à ambivalência de amar e odiar os pais, querer sua aprovação e ao mesmo tempo desejar se livrar de sua autoridade. Essa ambivalência, longe de ser anormal, é parte do processo de constituição subjetiva. Amar e, ao mesmo tempo, desejar a separação é parte do conflito humano.
Mas essa separação saudável, que Freud já intuía, ganha uma dimensão afetiva mais elaborada com Winnicott. Em sua teoria do desenvolvimento emocional, o autor nos mostra que um ambiente suficientemente bom permite ao bebê se desenvolver rumo à autonomia (WINNICOTT, 1983a). A mãe (ou quem cumpre essa função) é essencial nos primeiros tempos, mas sua função maior não é a de ser indispensável para sempre — é a de permitir que o sujeito se torne capaz de estar só (WINNICOTT, 1983b). Assim, o amor parental não deve aprisionar; ele deve libertar.
Winnicott também nos fala da importância da ilusão e da desilusão. Nos primeiros tempos, o bebê vive como se a mãe fosse uma extensão de si. Pouco a pouco, com frustrações manejáveis, ele vai percebendo que ela é um outro, separado. Esse processo é crucial para a construção do eu. Mas quando os pais não suportam que o filho se torne outro – ou quando cobram dele um retorno que invalida sua liberdade – interrompem esse ciclo natural do desenvolvimento emocional (WINNICOTT, 1983c).
A frase “você não deve nada aos seus pais”, portanto, não significa negar a importância dos pais na vida psíquica. Mas é um convite à diferenciação. A dívida simbólica com os pais – por terem cuidado, nutrido, amado – não precisa se transformar em culpa crônica ou em prisão emocional. Em vez de dívida, o que se espera é reconhecimento. E reconhecimento, na linguagem psicanalítica, só é possível entre sujeitos separados.
A tarefa mais difícil, mas mais libertadora, é essa: aceitar que amar não significa obedecer; que cuidar não significa cobrar; e que ser filho não significa pagar com a própria vida pelo investimento emocional dos pais. Como diz Winnicott, é no espaço transicional – aquele entre o dentro e o fora – que a criatividade e a liberdade do sujeito emergem (WINNICOTT, 1975). É aí que nos tornamos, de fato, humanos.
Referências
FREUD, Sigmund. Totem e tabu: algumas concordâncias entre a vida psíquica dos selvagens e dos neuróticos. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2012. (Obras completas, v. 13).
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. (Obras completas, v. 21).
WINNICOTT, Donald W. O brincar e a realidade. Trad. Claudia Berliner. Rio de Janeiro: Imago, 1975.
WINNICOTT, Donald W. Da pediatria à psicanálise: obras escolhidas. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Imago, 1983a.
WINNICOTT, Donald W. A capacidade de estar só. In: WINNICOTT, D. W. Da pediatria à psicanálise: obras escolhidas. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Imago, 1983b.
WINNICOTT, Donald W. O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional. Trad. Irineu Franco Perpetuo. São Paulo: Martins Fontes, 1983c.
Episódio do Rebobinando: https://open.spotify.com/episode/4sLPvWNPWjMHVzV3Qm787s?si=176e2b134d80430c